segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A Interdependência

S.S. o Dalai Lama

Considero particularmente útil o conceito de origem dependente formulado pela escola de filosofia buddhista Madhyamika. De acordo com esse conceito, podemos compreender como as coisas ocorrem de três maneiras diferentes. Num primeiro nível, recorre-se ao princípio de causa e efeito, pelo qual todas as coisas e acontecimentos surgem dependendo de uma complexa rede de causas e condições relacionadas entre si. Sendo assim, nada nem nenhum acontecimento pode vir a existir ou permanecer existindo por si só. Por exemplo, se eu pegar um punhado de barro e moldá-lo, posso fazer um vaso vir a existir. O vaso existe como resultado de meus atos. Ao mesmo tempo, é também o resultado de uma miríade de outras causas e condições. Estas abrangem a combinação de barro e água que forma a matéria-prima do vaso. Em acréscimo, há o agrupamento das moléculas, dos átomos e outras diminutas partículas que formam esses componentes. Em seguida, é preciso levar em conta as circunstâncias que levavam à minha decisão de fazer um vaso. E existem ainda as condições que cooperam ou interferem nas minhas ações à medida que dou forma ao barro. Todos esses diferentes fatores deixam claro que meu vaso não pode vir a existir independentemente de suas causas e condições. Ou seja, ele tem uma origem dependente, sua criação está subordinada a essas causas e condições.Num segundo nível, a interdependência pode ser compreendida em termos da mútua dependência que existe entre as partes e o todo. Sem as partes, não pode haver o todo e, sem o todo, o conceito de parte não tem sentido. A idéia de todo implica partes, mas cada uma dessas partes precisa ser considerada como um todo composto de suas próprias partes.No terceiro nível, pode-se dizer que todos os fenômenos têm uma origem dependente porque, quando os analisamos, verificamos que, em essência, eles não possuem uma identidade. Isto pode ser compreendido melhor se pensarmos na maneira como nos referimos a certos fenômenos. Por exemplo, as palavras "ação" e "agente": uma pressupõe a existência da outra. Assim como "pai" e "filho". A pessoa só pode ser um pai se tiver filhos. E um filho ou uma filha são assim chamados apenas como referência ao fato de terem pais. A mesma relação de mútua dependência é vista na linguagem que utilizamos para definir ramos de atividade ou profissões. Determinados indivíduos são chamados de fazendeiros em função de seu trabalho no campo. Os médicos são assim chamados por causa de seu trabalho na área de medicina.De maneira mais sutil, as coisas e acontecimentos podem ser compreendidos em termos de origem dependente quando, por exemplo perguntamos: o que é exatamente um vaso de barro? Quando procuramos algo que possa ser definido como sua identidade final, verificamos que a própria existência do vaso de barro — e, implicitamente, a de todos os outros fenômenos — é, até certo ponto, provisória e determinada pelas convenções. Quando indagamos se sua identidade é determinada por sua forma, sua função, suas partes específicas (ou seja, ser composto de barro, água, etc.), constatamos que a palavra "vaso" não passa de uma designação verbal. Não há uma única característica que se possa dizer que o identifica. Muito menos a totalidade de suas características. Podemos imaginar vasos de formas diferentes que não deixam de ser vasos. E porque só podemos realmente falar de sua existência em relação a uma rede complexa de causas e condições, se o encararmos segundo esta perspectiva, o vaso não tem de fato nenhuma propriedade que o defina. Em outras palavras, não existe em si ou por si, mas é antes de tudo originariamente dependente.No que se refere aos fenômenos mentais, verificamos que mais uma vez existe uma dependência. Neste caso, entre aquele que percebe e aquilo que é percebido. Tomemos como exemplo a percepção de uma flor. Em primeiro lugar, para que se possa perceber uma flor é preciso haver um órgão sensível. Segundo, precisa haver uma condição — neste caso, a própria flor. Em terceiro, para que ocorra a percepção é preciso haver algo que direcione a atenção daquele que percebe para o objeto. Então, através da interação causal dessas condições, ocorre um acontecimento cognitivo a que chamamos de percepção de uma flor. Agora vamos examinar em que consiste exatamente esse acontecimento. Seria apenas o funcionamento da faculdade sensorial? Seria apenas a interação entre essa faculdade sensorial e a própria flor? Ou seria outra coisa? Vemos que, no final, não conseguimos compreender o conceito de percepção a não ser dentro do contexto de uma intricada e imprecisa série de causas e condições.Uma outra maneira de compreender o conceito de origem dependente é considerar o fenômeno do tempo. Em geral, presumimos que há uma entidade com existência independente a que chamamos de tempo. Falamos de tempo passado, presente e futuro. Entretanto, quando examinamos melhor o assunto, vemos que esse conceito também é uma convenção. Verificamos que a expressão "momento presente" é apenas um rótulo que indica a interface entre os tempos "passado" e "futuro". Não podemos na realidade localizar com precisão o presente. O passado está apenas uma fração de segundo antes do suposto momento presente; apenas uma fração de segundo depois está o futuro. No entanto, se dissermos que o momento presente é "agora", assim que acabarmos de pronunciar esta palavra ele já estará no passado. Se sustentássemos que, mesmo assim, deve haver um único momento indivisível pelo passado ou pelo futuro, não haveria nenhuma razão pra separarmos presente, passado e futuro. Se houvesse um único momento indivisível, só teríamos o presente. Sem o conceito de presente, porém, fica difícil falar de passado e futuro já que ambos sem dúvida dependem do presente. Além do mais, se nossa análise nos fizesse concluir que então o presente não existe, teríamos de negar não só uma convenção mundial, como também a nossa própria existência. De fato, quando começamos a analisar nossa experiência com relação ao tempo, vemos que o passado desaparece e o futuro ainda está para chegar. Experimentamos apenas o presente. E o presente só toma forma como dependente do passado e do futuro.

Dalai Lama. Uma Ética para o Novo Milênio.

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